“O sofrimento da perda na infância é uma dor crua e penetrante que pode ser devastadora. Os adultos têm o benefício da experiência e do conhecimento passados, podem perspetivar a perda, mas esse não é o caso das crianças”
Mallon, B. (1998)
“O João percebeu que algo se passava… Não era normal o telefone tocar àquela hora da noite e muito menos a mãe falar incessantemente. O João apercebeu-se do movimento, levantou-se devagar e ficou parado à entrada do quarto dos pais. O cenário era sem dúvida invulgar: o pai sentado na beira da cama parecia minúsculo, dobrado sobre si mesmo, cabeça baixa, ombros caídos, costas curvadas e as mãos fundidas com aquilo que se adivinhava ser a cara, e a mãe, do outro lado, de costas, a vestir-se freneticamente enquanto fazia equilibrismo com o telemóvel. O João deu um passo e os rostos dos pais voltaram-se lívidos para ele… quase não os reconheceu. “O que se passa mamã, magoaste-te?”. A mãe esboçou um sorriso que lhe desfigurou a cara e com os olhos banhados em lágrimas disse titubeante “Está tudo bem, filho! Bati com a perna na cama. Anda. A mamã leva-te para o quarto.”… O João, meio a dormir, acedeu… Enrolou-se na cama, debaixo dos lençóis e sentiu-se estranho… ”
Há temas difíceis… Temas que nos assombram, temas que queremos manter longe porque nos fazem sofrer e sobre os quais fantasiamos manter distanciados da nossa vida e da dos nossos filhos. Mas a realidade não é assim, e viver na negação torna-se mais penoso que a própria realidade.
Um desses temas é a morte. Na sociedade atual, a maior parte de nós passa o tempo a fugir do assunto vivendo num mundo fictício de negação. Muitos pais, quando confrontados com o tema questionam-se acerca de se o devem abordar com os seus filhos e como o devem fazer.
No entanto, apesar de a perda, o luto, a separação serem assuntos difíceis de gerir são uma inevitabilidade para o qual nos podemos ir preparando no vínculo que estabelecemos com as nossas crianças, nas experiências diárias de perdas menores, nos exemplos que damos quando lidamos com os sentimentos e a frustração, na abertura que demonstramos ao falar dos eventos de vida e na forma como os gerimos.
Claro que, apesar desta preparação, chegada a altura em que a perda afeta diretamente a família, a gestão vai sempre revelar-se um desafio. O adulto vai ter de lidar com a sua dor e vai ter de fazer um esforço de ajustamento para acompanhar a criança. Para isso, deve ter em conta que as crianças percebem e reagem de forma diferente da sua e que este seu ajustamento é essencial para que todo o processo seja feito de forma construtiva.
A MORTE
A morte faz parte do ciclo da vida. Está presente no dia a dia sendo inevitável que as crianças sejam expostas à doença e morte em algum momento de suas vidas cumprindo o ciclo natural da vida. É um fenómeno irreversível e inevitável para todos os seres vivos.
O LUTO
O luto é uma experiência natural, normal e expectável quando consequência de uma perda significativa ou de uma morte. O luto é o trabalho interno que temos de fazer para nos adaptarmos à perda. O processo de luto inicia-se com a perceção da perda e inclui um processo de elaboração psíquica em que ocorre a mudança do significado dessa ligação abruptamente interrompida. Este processo pode ser ou não bem-sucedido. Como o luto está associado a uma quebra de vínculo, que é sentida como desamparo, aflição e dor pode desencadear ansiedade de separação e pânico, ou pode ser gerido de uma forma construtiva, com participação de todos e respeito, reforçando o vínculo na família, a aceitação e reconhecimento das emoções, e constituindo um incentivo para que a morte seja encarada como parte da vida. Constitui, portanto, uma experiência inevitável que, bem gerida, ajuda o indivíduo a crescer e amadurecer.
É importante reconhecermos que a perda e ao processo de luto são perspetivados de forma diferente por adultos e crianças. As reações emocionais e comportamentais da criança perante a morte não são equivalentes à do adulto e a forma como ela vive o luto e representa internamente a morte variam com a idade, o nível de desenvolvimento, o temperamento, as experiências anteriores, a proximidade da perda, os padrões de relações familiares anteriores ao acontecimento (isto é, pelo padrão de vinculação existente naquela família) e a forma como o sistema familiar reage e se reestrutura face à própria perda.
Ao longo do seu desenvolvimento e das suas vivências a criança vai aperfeiçoando a sua conceção da morte. Enquanto que para o adulto a perda se associa a acontecimentos críticos de vida que implicam um fim irreversível; para as crianças, a noção de perda é mais alargada. Ela é percebida em situações como o distanciamento do melhor amigo, a diminuição da atenção dos pais após o nascimento de um irmão ou a morte de um animal de estimação. E mesmo crianças pequenas, que podem não entender a morte reagem aos pais enlutados.
A forma como é discutida a morte com a criança deverá depender do nível de compreensão que a criança tem de quatro conceitos principais de morte:
Irreversibilidade (ou seja, a morte é permanente)
Finitude (ou seja, todo o funcionamento pára com a morte)
Inevitabilidade (ou seja, a morte é universal para todos os seres vivos)
Causalidade (ou seja, causas de morte).
A falta de compreensão destes conceitos pela criança afeta a sua capacidade de processar o que aconteceu e lidar com seus sentimentos, o que se vai refletir na forma como vivencia o luto e no acompanhamento que vai necessitar por parte do adulto.
As crianças em idade pré-escolar, por exemplo, costumam ver a morte como temporária e reversível, uma crença reforçada por personagens de desenhos animados que morrem e ganham vida novamente. Por outro lado, as crianças entre cinco e nove anos, apesar de já pensarem sobre a morte de uma forma próxima da do adulto, ainda acreditam que isso nunca acontecerá com elas ou com alguém que elas conhecem.
Em qualquer dos casos a comunicação da notícia deve ser feita de forma simples, mantendo em mente a perceção de que cada faixa etária tem da morte. As explicações devem ser dadas por um adulto que se sinta emocionalmente capaz de escutar as dúvidas e medos da criança, mesmo as mais inusitadas e privilegiando o uso de linguagem clara, simples e verdadeira. O tom de voz terno, a linguagem corporal tranquilizadora e a disponibilidade vão dar mais segurança à criança do que a tentativa de esconder a verdade.
ESTRATÉGIAS PARA AJUDAR A CRIANÇA/FAMÍLIA A LIDAR COM A PERDA
É importante esclarecer que suportar a criança numa situação de perda não é um processo fácil. É difícil, para um adulto que está a sofrer, acolher também as dúvidas e a dor da criança. No entanto, o amor e o apoio nestes momentos são fundamentais.
O suporte que o adulto consegue dar à criança está diretamente relacionado com o relacionamento prévio estabelecido com ela e com a forma como o próprio adulto lida com as suas emoções e como as consegue identificar em si e nos outros. Admitir o sofrimento, as dificuldades e os receios que são inerentes à perda e encarar esses sentimentos como essenciais ao processo de luto são um primeiro passo. Falamos aqui de dar abertura para falar e lidar com as emoções de grandes e pequenos. Admitir que estão envolvidas emoções negativas e que o adulto também sofre, também se revolta e também está triste é essencial para que o adulto inicie o seu processo de luto e possa consequentemente apoiar a criança. Ocultar a dor limita o espaço e abertura para cada um lidar com a situação da forma que lhe é mais conveniente.
O segundo passo passa por não excluir a criança do processo de dor da família. Aceitar a criança na dor é permitir que ela aceda ao mundo secreto dos sentimentos e àquele lugar onde tudo pode ser perguntado, dito ou esclarecido. O facto de permitirem que a criança participe das conversas, das discussões, das partilhas de medos faz com que estas que não se sintam sozinhas na dor, compartilhando o luto. Evita-se que o medo e a vergonha se instalem. Fornece também modelos à criança já que, as crianças aprendem a lidar com o sofrimento da perda apercebendo-se da forma como os seus adultos significativos o fazem. Assim, permitam-se, adultos e crianças, entender que não precisam de disfarçar ou ocultar a dor mas que a podem vivenciar à sua maneira. Todos choramos quando nos sentimos tristes, todos nos sentimos em baixo e até às vezes, também nos rimos mesmo nesses momentos. As emoções fazem parte da vida… quase como a paleta de cores do arco-íris… e só as reconhecendo e encarando é possível arranjar soluções e crescer…. Permitam-se sentir, reconhecer o que sentem e assim fazerem parte do processo de cura.
O terceiro passo é compreender que a tristeza é a outra face da alegria, que só se perde quando se ama. São duas faces indissociáveis da mesma moeda e que devem ser compreendidas como tal. Entramos aqui no processo psicológico do luto, aquele processo de reajustamento do significado da relação que foi abruptamente cortada. Cada um de nós tem a sua própria forma de lidar com a perda, e também isso podemos partilhar com a criança. Essa partilha vai servir de base à construção da própria explicação da criança e ao desenvolvimento das suas próprias estratégias - aquelas que a acalmam e a ajudam no processo de superação e na reformulação da ligação.
Segue-se o quarto passo, que consiste em respeitar o espaço de cada um e mostrar disponibilidade para o outro. Independentemente do nível de desenvolvimento cognitivo da criança, esta sofre sempre com a perda ao nível afetivo e emocional, ainda que possa querer continuar a brincar, a rir ou ver televisão. Tais comportamentos não significam que sente menos ou que “não quer saber”. São aliás comportamentos normais e significam apenas que a criança está a recorrer às atividades que lhe dão segurança e bem-estar trazendo alguma normalidade ao seu processo de sofrimento, o que ajuda na superação. A seu tempo, e se o adulto se mostrar disponível, a criança acaba por procurá-lo para se consolar e trabalhar no seu processo de luto. Basta estar disponível e a procura ocorrerá. Seja genuíno nessa disponibilidade e esteja atento às mensagens das entrelinhas: os pedidos de ajuda podem chegar por palavras, mas a maior parte das vezes estão espelhados nos comportamentos.
Quando existe uma vinculação forte, um conhecimento mútuo e uma comunicação aberta no interior da família há espaço para que os filhos comuniquem e expressem abertamente os seus sentimentos, buscando as respostas para perguntas que ultrapassam a sua compreensão. O adulto nem sempre vai ter todas as respostas, mas ao mostrar abertura para escutar a criança, aceitar as suas angústias e conversar sobre o assunto vai ajudar a acalmar as inquietações e permitir que a criança encontre as suas próprias respostas.
As respostas a estas situações de crise vão sendo construídas no dia a dia. A vida está cheia de desafios e os fenómenos do ciclo de vida estão espelhados no mundo mesmo debaixo da nossa vista. Ao partilharmos a vida com os nossos filhos estamos a prepará-los para os diversos desafios que a vida nos traz. Ao sermos verdadeiros acerca dos eventos de vida e dos sentimentos que estes nos provocam, ao estarmos atentos aos sentimentos e necessidades, ao estarmos atentos ao mundo e aos outros abrimos vias de comunicação com os mais novos ajudando-os no seu processo de desenvolvimento e a enfrentar os momentos menos bons com que se deparam.
Todas as experiências de vida têm um papel importante na construção da personalidade da criança e na forma como ela vai viver e superar as adversidades no futuro. A família tem, por isso, mais este papel fundamental no futuro da criança, promovendo a compreensão dos fenómenos da vida, afastando dela pensamentos erróneos ou castradores e facilitando igualmente, o seu trabalho de reconstrução, adaptação e aceitação da realidade.
Na maioria dos casos as crianças ultrapassam o processo de luto de forma saudável. No entanto, há casos extremos de lutos não resolvidos… Nestes casos, em que a evolução da situação se torna muito difícil, ou o peso do sofrimento do adulto não permite amparar a criança deverão recorrer à ajuda de um profissional. Saber pedir ajuda é também uma importante lição de vida.
Núcleo de Psicologia PdG & Núcleo de Pediatria PdG
AGRADECIMENTO: Agradecemos à artista Ana Loureiro que nos autorizou a publicação da sua magnífica aguarela a acompanhar este artigo.
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